Um coração missionário para viver o Jubileu com alegria
Entrevista ao cardeal Luis Antonio Tagle
«Poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, pois é ele que me distingue, me configura na minha identidade espiritual e me põe em comunhão com os outros homens»: esta é uma das passagens mais significativas de Dilexit nos, a encíclica do Papa Francisco publicada a 24 de outubro. Um documento magisterial que não teve o vasto eco que tiveram as duas encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti, mas que representa uma chave interpretativa de todo o pontificado.
Dilexit nos pode ser útil também para compreender melhor um acontecimento como o Sínodo sobre a sinodalidade, que acaba de ser concluído, e o Jubileu que vai começar daqui a algumas semanas. Falámos a este propósito com o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, pró-prefeito do Dicastério para a Evangelização, que na sua entrevista aos meios de comunicação do Vaticano reflete também sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, muito difundida nas Filipinas e que aprendeu a praticar desde muito jovem.
A publicação de Dilexit nos causou uma certa admiração. Depois das encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti, Francisco promulgou uma encíclica espiritual. Como acolheu este documento?
O Papa Francisco é um Papa de surpresas. Embora o anúncio da encíclica e a sua publicação tenham sido, de certa forma, inesperados, tendo em conta a atenção dada ao Sínodo dos Bispos, não me surpreendeu totalmente que o Santo Padre publicasse uma encíclica sobre o amor de Jesus por nós, simbolizado pelo seu Sagrado Coração. Para mim, era a forma de o Santo Padre tornar mais explícitos os fundamentos cristológicos das encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti. O amor de Jesus, quando o recebemos, permite-nos ver um irmão e uma irmã nos outros seres humanos (Fratelli tutti) e ser guardiães atentos, humildes e responsáveis da nossa casa comum (Laudato si’). Diria que os escritos e os discursos do Papa Francisco são sistematicamente fundamentados na nossa fé na Pessoa e na missão de Jesus Cristo. Sugiro a releitura destas duas encíclicas sociais para encontrar traços ou sementes da Dilexit nos já presentes nelas.
Nas Filipinas, a devoção ao Sagrado Coração é muito popular e envolve sobretudo as pessoas mais simples, o povo de Deus. Qual foi a sua experiência desta devoção no seu país?
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é muito popular nas Filipinas. Estamos gratos às muitas ordens religiosas que têm o nome de “Sagrado Coração”, à Companhia de Jesus e ao Apostolado da Oração, que promovem a devoção nas dioceses, paróquias, escolas e famílias. Para além das vigílias e das orações em cada primeira sexta-feira do mês, é costume ter em casa uma imagem do Sagrado Coração coroado. Pedimos ao Coração de Jesus que guie e governe as nossas famílias e a nossa nação com a sua misericórdia e o seu amor. Esta oração vem de um povo cujo coração foi ferido pela injustiça, pela ganância, pela corrupção e pela indiferença. A devoção serve também para nos recordar que devemos pedir constantemente a Jesus que transforme os nossos corações para que sejam como os dele. Ainda hoje, em algumas ocasiões, cantamos o hino oficial do Congresso Eucarístico Internacional realizado em Manila (1937), um hino ao Sagrado Coração em espanhol, no qual a nação oferece o seu coração a Jesus: “No más Amor que el tuyo, O Corazón Divino. El Pueblo Filipino te da su corazón”. Este cântico nunca deixa de consolar o coração e de fazer correr lágrimas nos olhos.
Em Dilexit nos, o Papa observa que a humanidade de hoje parece estar a perder o seu coração e convida-nos, a nós cristãos, a redescobrir como o Coração de Jesus nos ama. Que se pode fazer para reavivar a consciência de que tudo brota do nosso coração?
Em Dilexit nos, o Papa Francisco descreve o fenómeno e as causas da superficialidade que se está a difundir como uma cultura que nos impede de entrar em contacto com o coração de onde emanam o amor, a verdade e a compaixão. Sugiro a leitura da descrição da superficialidade oferecida pelo Santo Padre como guia para um exame de consciência. Tomar consciência de como estou a perder lentamente o contacto com o meu eu interior e com o meu eu mais verdadeiro é o primeiro passo para despertar o coração. Também gosto da lista de santos do Papa Francisco, ou o que eu chamo “cortejo” ou procissão dos santos, que nos oferecem o seu testemunho do amor insondável do Coração de Jesus e como isso transformou a vida e missão deles. Sugiro que vejamos a “cortejo” e que nos juntemos a ele. Podemos reavivar a consciência do coração não através de conceitos ou abstrações, mas escutando os corações que encontraram a verdadeira vida no Coração amoroso de Jesus.
O coração faz-nos pensar na pessoa e nas relações. No recém-concluído Sínodo sobre a sinodalidade, no qual participou, falou-se muito — também no Documento final — sobre a conversão das relações. Esta encíclica pode servir de bússola para orientar o caminho de uma Igreja sinodal, como encoraja o Papa Francisco?
Dilexit nos tem muito a ensinar à Igreja, que quer ser sinodal e missionária. Durante a Sessão do Sínodo dos bispos, recentemente concluída, foi repetidamente afirmado que a sinodalidade é, em última análise, uma questão de relações: com Deus, com todos os batizados que constituem a Igreja, com a humanidade inteira e com toda a criação. A renovação da Igreja na sinodalidade missionária só pode ser alcançada se nos relacionarmos com confiança, obediência e humildade com o Deus Uno e Trino que é amor. A sinodalidade missionária exige uma relação de coração a coração entre pastores e fiéis, entre Igrejas locais, etc., onde o coração de cada um é purificado de preconceitos em relação aos outros e de orgulho autopromocional, e é assim capaz de escutar com empatia. Sem relações humanas purificadas pela graça divina, a sinodalidade missionária poderia reduzir-se a propostas meramente burocráticas e legalistas, sem um coração que arde com o Espírito Santo, chama do amor divino.
Aproxima-se o Jubileu: um ano de graça, de reconciliação e de libertação. Um Ano Santo que o Papa centrou no tema da esperança. Como se relaciona a encíclica sobre o Coração de Jesus com o próximo Jubileu?
Creio que a ligação entre Dilexit nos e o próximo Jubileu se centra na peregrinação na esperança, na dimensão missionária da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Para começar, o Coração de Jesus é um coração missionário que, através de um coração humano, leva o amor divino transbordante a todas as pessoas, a todas as situações humanas e à criação. O amor misericordioso do Coração de Jesus oferece esperança a um mundo despedaçado, especialmente àqueles que não veem qualquer possibilidade de redenção na vida. O Papa Francisco convida-nos a acolher o amor de Jesus nos nossos corações e a deixá-lo escorrer sem o impedir de fluir para as outras pessoas e para a sociedade. Dilexit nos é um valioso recurso espiritual e missionário para este Jubileu, para preparar cada um de nós a ser um peregrino que partilha o amor de Jesus com os outros, o amor que liberta todos os corações do medo, do orgulho, do egoísmo, da indiferença, da vingança e do desespero. Ele ama-nos, por isso temos esperança!
Alessandro Gisotti
L’OSSERVATORE ROMANO
Cidade do Vaticano
Quinta-feira, 07 novembro 2024.
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